Rio
Das cloacas da Roma antiga à privada de Bill Gates
Livro revela histórias, mazelas e conquistas do saneamento básico no Brasil e no mundo e propõe debate sobre caminhos possíveis
Correndo escondido sob o solo, misturado por séculos às águas limpas dos rios e do mar, renegado ao segundo plano urbanístico de governos e nações, o saneamento se impõe como pauta emergencial após uma tradição de descaso. As graves consequências da invisibilidade, o contexto por trás dos fatos e os principais agentes desta trajetória são tema do livro “A Epopeia do Saneamento: da revolução sanitária às tecnologias do futuro”, Letra Capital Editora, de Aspásia Camargo e Márcio Santa Rosa.
Uma obra que reúne história, engenharia sanitária, política, urbanismo e economia e apresenta caminhos para um desafio que une toda a humanidade. Como escreve no texto de apresentação Gesner Oliveira, professor e coordenador do Centro de Estudos de Infraestrutura e Soluções Ambientais da Fundação Getúlio Vargas, “Epopeia do Saneamento” é “um dos relatos mais ricos sobre a história do saneamento no país”.
O livro tem início com uma homenagem. Na verdade, 120 homenageados são destacados por sua atuação relevante no setor. O primeiro deles, Dom Pedro II. Visionário, amante da ciência, curioso em relação a tecnologias, o imperador do Brasil foi o responsável por trazer ao país uma nova maneira de tratar o esgoto e a água potável que acabara de surgir na até então fétida Londres. O Rio de Janeiro foi, de acordo com os autores, a terceira cidade do mundo a viver a revolução sanitária surgida pouco tempo antes na Inglaterra e adotada também por Hamburgo, na Alemanha.
“Dom Pedro II é o nosso herói. Um homem verdadeiramente à frente do seu tempo, que vislumbrou a importância do saneamento para a manutenção da vida. Só lamentamos que tivemos que esperar mais de um século e meio para ver o sonho do imperador começar a se realizar”, conta Aspásia.
O caminho percorrido pelo saneamento, que começa séculos antes de Cristo, é revelado em texto e imagens. Das primeiras cloacas públicas na Roma antiga, passando pelo famoso “trono” de Elizabeth I, todas as conquistas e mazelas são dissecadas. O livro aprofunda a análise das decisões equivocadas tomadas ao longo desse percurso pelos governantes, assim como as omissões e a falta de políticas públicas eficazes que levaram o mundo a viver hoje dois grandes paradoxos: a água que sofre com a extrema poluição se tornou a maior commodity da atualidade, e o sistema de esgoto, criado para não ser visto, não pode mais ser ignorado e se impôs pela sua falência.
“São 20 capítulos que devem ser lidos aos poucos, de gota em gota. Uma viagem fascinante por diferentes aspectos deste tema que é tão complexo e vital”, afirma Aspásia.
Apesar dos longos períodos de estagnação e retrocesso, a civilização registra marcos históricos que fizeram avançar o debate e as iniciativas para reduzir o impacto da falta de coleta adequada e de tratamento do esgoto sobre a saúde da população e o meio ambiente. No cenário global, o livro destaca, por exemplo, a criação de políticas mundiais para as questões ambientais, capitaneadas pela Organização das Nações Unidas, com o lançamento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (o ODS 6 trata de água potável e saneamento para todos), a realização dos Fóruns Mundiais da Água e a disseminação do conceito da economia verde.
No caso do Brasil, a publicação enaltece o papel heroico de pessoas e instituições que empunharam e empunham a bandeira do saneamento universal, denunciando fracassos e apontando caminhos. A frase destacada do jornalista Fernando Gabeira, por exemplo, dita em 2010 (“O saneamento é uma conquista do século XIX, que ainda não conseguimos realizar em pleno século XXI. Esta é uma derrota da nossa geração”) reflete sua reação diante da constatação do fracasso do Programa de Despoluição da Baía de Guanabara.
Em termos de trabalho institucional positivo, o livro aponta a criação do Instituto Trata Brasil, dedicado a produzir dados confiáveis sobre saneamento no país, e a Comissão de Meio Ambiente da Assembleia Legislativa do Rio que, sob a presidência de Aspásia, produziu um relatório completo sobre a situação do saneamento no Estado do Rio de Janeiro. Também valoriza o papel da imprensa para a comunicação pública do tema e dá dois exemplos bem próximos dos fluminenses, implantados há tempo suficiente para mostrar resultados animadores: a concessão dos serviços na área da AP5 (parte da Zona Oeste do Rio) e no município de Niterói, líder no ranking das melhores cidades do estado e que tem no saneamento ambiental seu pilar mais forte.
Um dos pontos altos do livro é a reconstrução das misérias do saneamento no Estado do Rio e as mudanças que ocorreram, com o plano estratégico de Jaime Lerner e o planejamento proposto pelo Instituto Rio Metrópole, sob o comando de Vicente Loureiro. Tais mudanças culminaram com o leilão da Cedae e o início do trabalho dos consórcios vencedores, uma atuação que já está mudando o panorama ambiental fluminense.
O novo Marco Legal do Saneamento surge como excelente oportunidade para resolver o problema brasileiro, permitindo a realização dos leilões e a concessão dos serviços à iniciativa privada, sem tirar do poder público sua responsabilidade de criar as políticas que deverão ser adotadas.
“Estamos vivendo um grande momento em que a universalização é uma possibilidade com mais potencial de realidade do que nunca. E a nossa obstinação por fazer um trabalho tão denso e extenso como este é o nosso testemunho de que acreditamos na universalização, mesmo com o prazo curto de entrega até 2033. Mas deixamos claro no livro as condições para que isso aconteça, além das cláusulas determinadas nos contratos das concessionárias, que terão que ser materializadas para que o processo se conclua”, afirma Márcio Santa Rosa.
A obra aborda ainda o potencial que esta área reserva em relação à economia circular. O texto traz análises de novas tecnologias ligadas à sustentabilidade como a busca por um sistema de descarga financiado pelo bilionário americano Bill Gates, que promete revolucionar o setor. Tudo contado e analisado por dois especialistas que viveram de perto, nas últimas décadas, o debate e os marcos do saneamento brasileiro, e do Rio de Janeiro em particular. Um trabalho feito por dois “sonhadores”, como os próprios autores se definem por acreditarem que, mais do que nunca, existe solução para essa questão.
O engenheiro civil Márcio Santa Rosa, técnico e pesquisador da água, trouxe na bagagem a sua militância nos comitês de bacias hidrográficas, além de sua participação nos programas de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG) e de Saneamento dos Municípios do Entorno da Baía de Guanabara (Psam) e na coordenação do Plano de Gestão Ambiental e Sustentabilidade da candidatura do Rio para os Jogos Olímpicos de 2016. Já Aspásia Camargo, doutora em Sociologia pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais da Universidade de Paris, foi também presidente do IPEA e secretária-executiva do Ministério do Meio Ambiente no governo Fernando Henrique, quando coordenou a Comissão de Desenvolvimento Sustentável que produziu a Agenda 21 Brasileira. Participou ainda das negociações com a Secretaria Nacional de Recursos Hídricos para aprovação da Lei das Águas, em 1997, que criou o comitê de bacias hidrográficas e a agência de águas, regionalizando a gestão participativa dos recursos hídricos.
Para completar o debate iniciado com o “A Epopeia do Saneamento”, Aspásia e Márcio gravam uma série de podcasts com convidados que são expoentes na área. Livro e podcasts trazem à tona um alerta: o tempo para transformar o saneamento básico no Brasil, onde 50% não contam com rede de coleta de esgoto e 15% não têm acesso à água potável, se esgotou. Os autores deixam clara a mensagem de que é urgente a necessidade de adoção de medidas transformadoras com a vigência do Marco Legal do Saneamento. É preciso exigir saneamento básico em todas as 5.570 cidades brasileiras. Uma batalha digna do título do livro.
“Epopeia” é um gênero literário que versa sobre acontecimentos históricos ou míticos considerados fundamentais para a formação das culturas. Uma realidade que se impõe no Brasil e no mundo.