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Família de jovem morto em quartel denuncia negligência e pressão para assinar documento em branco
Gabriel Henrique Lima morreu após exercícios no 1° Batalhão de Polícia do Exército na TijucaA família do jovem Gabriel Henrique Lima, morto após ser submetido a uma bateria de exercícios no 1° Batalhão de Polícia do Exército (BPE), completa nesta segunda-feira (03) quatro meses em busca de justiça. O doutor Luiz Gustavo Dantas Pagliarini, 2° Tenente Médico do Exército, é acusado de negar atendimento ao jovem de 18 anos na enfermaria do quartel na Tijuca, Zona Norte do Rio.
Gabriel não foi o único soldado a morrer no 1°BPE. Pedro Henrique Pereira dos Santos, de 18 anos, faleceu no mesmo batalhão em março de 2022 após uma sessão de exercícios. Os familiares acreditam que ele também foi vítima de negligência.
Carlos Henrique Pinto, pai de Gabriel, recebeu a ligação noticiando o falecimento do filho na noite de 3 de março, apenas dois dias após ele ingressar na corporação. “[O Exército] matou o Pedro Henrique. Matou meu Gabriel Henrique. Qual Henrique ele vai matar amanhã?”, lamentou o pai enquanto chorava.
O jovem foi encaminhado para a enfermaria junto a outro soldado, que passou mal durante a mesma sessão de treinamento. Segundo o colega, o grupo foi obrigado a marchar vestindo casacos sob o sol de 12h. A temperatura era de 39 graus na região neste horário, segundo o Sistema Alerta Rio.
Ao chegarem para receber atendimento, o Dr. Pagliarini não estava na enfermaria, de acordo com o colega. Um militar o chamou por telefone e disse: “O tenente está vindo aí. Agora vocês estão f*did*s. Ele vai esculachar vocês”. Ainda de acordo com a testemunha, o doutor falou que ele “tinha cara de assassino” e Gabriel “tinha cara de nerd”. Em seguida, Pagliarini exigiu que eles voltassem de onde vieram e ameaçou que, caso a dupla retornasse à enfermaria, “iria ver só”.
“Ir para a enfermaria de lá é a mesma coisa que nada. Os caras vão falar que tu é ruim, que tu é fraco… “, relatou o recruta, que não será identificado para não correr o risco de sofrer retaliações. Foi ele que alertou o Cabo Edison De Araújo, que coordenava os exercícios, sobre a situação de Gabriel, após perceber que o jovem estava pálido. Perguntado porque não disse que estava mal, o soldado contou ao colega: “Eles vão pensar que eu sou fraco”.
Durante a noite, os superiores continuaram submetendo os recrutas a exercícios físicos. Segundo testemunhas, a turma foi orientada pelo Cabo Ronaldo Ferreira a ficar em posição de flexão e só descansar após um dos soldados cruzar duas vezes o ginásio rastejando como forma de punição. Gabriel passou mal novamente e teve alucinações. O jovem levantou, correu, gritou “bom dia, sargento” e começou a convulsionar.
Por volta de 19h, ele foi encaminhado para o Hospital Central do Exército (HCE), onde morreu. Ao chegarem no hospital, um militar tentou persuadir Carlos Henrique e a mãe do jovem, Margareth Lima, a assinar um documento com lacunas em branco. Segundo o casal, o homem os abordou ainda no estacionamento do hospital com uma folha preenchida apenas com o nome do filho, a matrícula e a causa da morte atestada como parada cardiorrespiratória.
O documento era uma autorização para a autópsia do corpo ser realizada no HCE, segundo os pais do jovem. Carlos afirma que ouviu uma médica dizer: “Agora f*deu, porque a família não quer que faça [a autópsia] aqui”. O corpo só foi liberado para o Instituto Médico Legal (IML) por volta de 6h do dia seguinte.
Um inquérito policial militar (IPM) foi instaurado para apurar as circunstâncias da morte do soldado Gabriel Henrique dos Santos Lima e corre em segredo de justiça. A reportagem da Super Rádio Tupi teve acesso à parte do processo. Em depoimento, o Dr. Pagliarini alegou que Gabriel apresentava quadro de astenia (cansaço) e que a pressão do menino estava em 16 por 9. Segundo o médico, ele foi liberado após dizer que estava bem.
O recruta que presenciou o momento afirma que Gabriel relatou sentir calafrios, febre e tontura. A queixa revela sintomas de hipertermia, de acordo com o chefe da Clínica Médica de Servidores Sylvio Provenzano.
“[A hipertermia] é sempre um quadro muito grave. Voltar a fazer exercício físico era uma temeridade, como acabou se constatando. Evidentemente, se a pessoa tiver algum problema de saúde prévio é pior, mas isso pode, rigorosamente, acontecer com qualquer um, inclusive jovens, como era o caso desse rapaz”, explicou Provenzano.
A hipertermia ocorre após o aumento excessivo da temperatura central do corpo, que geralmente ultrapassa 40ºC. A alta temperatura compromete tecidos e órgãos, podendo levar ao óbito.
Sem exames prévios
Os jovens que ingressam no Exército não são submetidos a nenhum tipo de avaliação física prévia durante a fase de seleção nas organizações militares. Os candidatos passam apenas por uma avaliação fisiológica com entrevista e preenchimento de ficha médica.
“Se há uma condição de saúde grave e preexistente, ela deve ser prontamente informada pelo interessado à Força, não cabendo a esta investigar alguma condição de saúde específica nesta fase preliminar”, informou o Tenente Coronel Gustavo de Lima, Comandante do 1° BPE, em resposta ao ofício n° 6004597/2023 – DPU/1DRDH RI.
Gabriel e Pedro não possuíam nenhuma doença ou problema de saúde, de acordo com os familiares.
“É uma coisa desproporcional e sem sentido. Como você coloca os jovens […] para fazer exercícios físicos pesados, no calor do Rio de Janeiro, com roupas pesadas, sem saber a estrutura física de cada um? [Deveria], no mínimo, solicitar exames admissionais como qualquer empresa”, afirmou o pai de Gabriel.
Doença preexistente
O Exército também alegou a possibilidade de João Victor Alves da Silva, de 18 anos, morto na 2ª Companhia De Infantaria, ter problemas de saúde prévios, mas a família diz que ele era saudável e fazia atividades físicas frequentes. Segundo a irmã do soldado, Bárbara Alves, o jovem estava em um acampamento no quartel, localizado no Parque Jardim Carioca, em Campos dos Goytacazes, e foi submetido a uma quantidade extrema de exercícios pesados.
Na véspera da morte do jovem, a família recebeu uma foto dele no acampamento. “A gente viu que meu irmão não estava bem. Ele estava com o olho muito fundo e com a expressão de muito cansado”, relembrou a irmã. João Victor teve duas paradas cardiorrespiratórias e morreu no dia 26 de abril.
De acordo com a família, João relatou cansaço e fortes cãibras nas pernas por volta de 16h, mas os militares pensaram que ele estava “de corpo mole”. Às 22h03, os pais do menino receberam a ligação de um subtenente questionando se João tinha histórico de delírios. Doze minutos depois, a família foi convocada a comparecer no Hospital Ferreira Machado, onde foi declarado o óbito.
“Desde então minha vida não é mais a mesma. A vida dos meus pais não é mais a mesma. Tudo mudou”, lamentou Bárbara. “A gente luta para que outro João e que outro Gabriel não venha a morrer dentro de um sonho que era deles”, completou.
João Victor chegou a ser colocado em uma barraca improvisada para primeiros socorros, segundo a irmã, onde tiraram o coturno e as meias encharcadas. Entretanto, ele só foi levado ao hospital quase quatro horas após a queixa.
“O que mais dói é que no nosso momento de maior dor, estamos lidando com pessoas tão frias, que tratam um óbito como qualquer coisa. [Eles] não têm um cuidado do que é o sofrimento do próximo”, disse Bárbara.
O que dizem os envolvidos
A Seção de Comunicação Social do Comando Militar do Leste (CML) informou que foram abertos Inquéritos Policiais Militares (IPM) referentes aos três casos citados: dos jovens Gabriel Henrique, Pedro Henrique e João Victor, e que todos se encontram em fase de diligências. O CML ressaltou que os inquéritos seguem em segredo de justiça e, por isso, não cabe ao comando comentar estes processos.
O Cabo Edison Lucas Silva de Araújo, o Cabo Ronaldo da Silva Ferreira e o 2° Tenente Médico do Exército Luiz Gustavo Dantas Pagliarini não responderam às tentativas de contato da reportagem da Super Rádio Tupi.